Miguel Fileno Carvalho em Destaque
ao centro na foto
Com uma importante exposição de Cruzeiro Seixas – um dos fundadores do movimento surrealista em Portugal, ainda vivo – decorrida em 2003, a Figueira da Foz tem sido, desde então, um palco quase nuclear das actividades surrealistas portuguesas, uma vez que é (d)aqui que têm nascido os últimos projectos com projecção internacional.
Na linguagem comum, a designação de surrealismo e o adjectivo surreal (embora na sua vastíssima obra André Breton apenas o tenha utilizado duas vezes) aparecem frequentemente nos media, e até na Assembleia da República, ligados à ideia de algo que parece saído de um sonho, uma situação caricata ou inverosímil. Mas o surrealismo não é, defendem os surrealistas, um movimento artístico. É, afirmam, muito mais do que uma corrente de pensamento, muito mais do que o que a razão e a lógica – que não lhes bastam nem lhes servem – conseguem expressar em palavras. Numa tentativa vã, pode arriscar afirmar-se que é uma forma de estar na vida, de sentir a vida, de viver e de, ao longo desse acto, ir interagindo com a vida, tendo como pilares a poesia (não como estilo literário mas, parafraseando Andre Breton, como “perfeita compensação das misérias que padecemos”), a liberdade e o amor, numa tríade em que o desejo, entendido como “único impulsionador do mundo e único rigor que o homem se deve impor”, é simultaneamente o mínimo e o máximo denominador comum.
No Cabo Mondego, onde a terra acaba e começa e o mar começa e acaba, sem horizontes que lhe antecipe o fim, o surrealismo vive, cria e agita. Fomos conhecer o “Cabo Mondego Section of the Portuguese Surrealism”.
Não é um grupo surrealista, pois não têm manifesto, nem querem ter. O nome designa ‘apenas’ a actividade colectiva exercida por um conjunto flutante de pessoas, cuja liberdade é feita pela poesia e pelo amor. Quem por lá passa, à secção pertence.
O pintor Rik Lina e a sua esposa, a ceramista Elizé Bleys, estão na Figueira da Foz pela quarta vez desde 2007. O casal holandês habita uma casa amarela com vista para o mar e para a serra. Foi na sala colorida com as cores e as texturas das suas pinturas e assemblages que os dois artistas receberam a reportagem de O Figueirense, numa tarde em que, como em tantas outras, desfrutavam da companhia do pintor portuense Seixas Peixoto, há muito a viver na Figueira da Foz, e do livreiro e editor figueirense Miguel de Carvalho. A faltar – e a fazer falta, sublinharam todos – estava o escritor conimbricense João Rasteiro. Quando juntos, constituem o núcleo do “Cabo Mondego Section of the Portuguese Surrealism”, um pólo que é sobretudo um local de encontro e de partilha de criações, de ideias, de vivências e de visões. Porque, defendem, “ao contrário do que pretendem a maioria dos críticos de arte e dos académicos, que necessitam que o surrealismo esteja morto para fazerem carreira sem que ninguém lhes faça frente, o surrealismo está vivo. Porque, garantem, o surrealismo viverá enquanto houver Humanidade, porquanto poesia, liberdade, amor e desejo são características que definem o humano, como o são a locomoção erecta ou a memória.
Uma editora surrealista
A designação DEBOUT SUR L’OEUF (DSO) surgiu em 2006 do convívio entre Miguel de Carvalho e Cruzeiro Seixas, a propósito da necessidade de criar uma revista dedicada ao surrealismo, com fim de divulgar o que se pratica tanto cá como além fronteiras. Desta revista ainda não saiu o primeiro número (está na forja – garante o editor), mas o nome deu origem às edições artesanais que o livreiro-editor concebe, assim como ao manifesto das exposições que, periodicamente, acolhe no seu espaço em Coimbra. Cruzeiro Seixas, o grupo surrealista checo “Stir Up” e Rik Lina, são, entre muitos outros, alguns dos nomes que já lá expuseram, sem fins comerciais: as edições artesanais, por exemplo, ficam-se pelos 30 ou 40 exemplares, que acabam nas mãos de alguns surrealistas de todo o mundo, ou nas mãos de alguns coleccionadores atentos às movimentações dos surrealistas, como testemunho de uma união sem fronteiras, e não em resultado de trocas com valor comercial.
Da mesma forma se produziram as actividades desenvolvidas em 2008, de que se destaca a exposição internacional de surrealismo actual “O Reverso do Olhar”, que esteve no Edifício do Chiado e na Casa da Cultura de Coimbra, trazendo àquela cidade a maior exposição de surrealismo actual em todo o mundo dos últimos 30 anos. Ao todo participaram 160 surrealistas, com mais de 320 obras de pintura, fotografia e esculturas, para não mencionar as dezenas de publicações periódicas e livros sobre a matéria. No mesmo ano, na Galeria Municipal Artur Bual, na Amadora, os surrealistas mostraram-se através da DSO em “A Voz dos Espelhos”, uma exposição que contou com intervenções de Seixas Peixoto, Rik Lina, Alfredo Luz e Miguel de Carvalho, assim como com a declamação de poesia de João Rasteiro e Alfredo Luz.
Já este ano, em Janeiro, dezenas destes surrealistas – por definição avessos aos poderes instituídos e modeladores, sejam eles políticos, religiosos ou outros – surpreenderam ao inaugurar uma exposição com o apoio municipal num convento: foi no Convento de S. José, em Lagoa, com a abertura a ser feita à luz das velas, entregues individualmente aos visitantes. “O Marcel Duchamp já o fizera em 1938, em Paris”, fez notar Miguel de Carvalho lembrando que o título do evento era exactamente “Iluminações Descontínuas”.
Cadavre exquis
É um dos ‘jogos’ que mais seduz os surrealistas. Consiste na prática colectiva de desenhos e/ou escritos. Cada um dos participantes executa livremente o seu desenho ou escrito sem tomar conhecimento do que fizera o participante anterior com cujo trabalho tem continuidade. Deixa apenas visível uma pequena secção (riscos ou palavras) por onde se inicia a intervenção do participante seguinte. Elabora-se sucessivamente esta técnica até se esgotarem a totalidade das participações no jogo. No final, destapa-se todo o conjunto para apresentação do resultado global. A imagem resultante constitui assim uma surpresa e um inédito: nunca seria possível a sua obtenção de um único cérebro. Um dos aspectos fundamentais desta prática de jogos é a noção de acção colectiva. Defensores do automatismo e do acaso objectivo, da espontaneidade que não permite outra regra que não a ausência de regras, os surrealistas privilegiam o trabalho colectivo. Na exposição da Amadora, uma tela de seis metros foi assim executada na inauguração, entre participantes e público. Outra das técnicas criativas a várias mãos consiste em, simplesmente, partilhar em simultâneo o acto de criação. Foi o que aconteceu na exposição de Coimbra “O Reverso do Olhar”, com uma sessão de pintura automática ao vivo durante o vernissage, com a presença de pintores automatistas costariquenhos, argentinos, holandeses e franceses. “É como uma sessão de jazz (note-se que esta modalidade musical está conectada ao surrealismo exactamente pelo automatismo), cada um pinta livremente, como quer e como sente, e tudo se encaixa, numa melodia visual”, ilustrou Seixas Peixoto. O automatismo e a acção colectiva são duas formas de estar essenciais no Surrealismo. Surrealismo: um mundo sem fronteiras
Mas como se conhecem, como se relacionam, os surrealistas de todo o mundo? “Há quem trabalhe sobretudo sozinho”, reconhecem os surrealistas da Secção do Cabo Mondego. Mas muitos sentem que o automatismo e jogos como o cadavre-exquis contribuem para o plano superior do maravilhoso a que rumam. “O maravilhoso é sempre belo, qualquer maravilhoso é belo, e mesmo só o maravilhoso é belo”, sintetizou André Breton. Por isso, e porque a Internet fez da aldeia global pouco mais do que uma casa com um muitas divisões e ainda mais portas, os surrealistas de Portugal e os da Holanda, mas também os da Colômbia, do Chile, da Argentina, do México ou do Brasil, entre muitos outros oriundos de cerca de 30 países, não têm dificuldade em manter-se em contacto. Criam para uma plataforma comum, que se materializa nas revistas surrealistas “Brumes Blondes”, “Tortue-Lievre”, “Superieur Inconnu”, “Pleine Marge”, “InfoSurr”, “Styx” e “Cahier de L’Umbo”, entre outras, e organizam-se em grupos, por afinidades, para facilitar intercâmbios. E claro, muitos – como Rik e Elizé – viajam. “Quem já fez pequena fortuna à custa do surrealismo foram os Correios, cujos serviços são diariamente utilizados para trocas de publicações e obras originais”, diz, sorrindo, Miguel Carvalho.
Rik Lina e Elisé Bleys
Hoje, o casal já pode ‘dar-se ao luxo’ de largar ‘tudo’ para procurar, em novos lugares, novas matérias digeríveis para os seus sonhos e úteis para as suas criações, sejam elas as cores inacessíveis do fundo do mar ou a amizade que encontraram numa povoação hospitaleira. Mas mesmo quando a existência de filhos pequenos aconselhava mais prudência, Rik e Elisé mantiveram-se fiéis aos seus valores, artísticos e humanos. Chegaram a partir sem bagagem para as Antilhas holandesas, pernoitando na praia – convém lembrar que o clima é ligeiramente mais agradável naquela latitude, pelo que a aventura, sendo-o, não era tão penosa como seria, por exemplo, na Figueira da Foz – até Rik fazer uma exposição de pintura e conseguir dinheiro para construírem uma casa. Com um invejável curriculum de mergulho de mais de 1500 horas, Rik e Elisé renderam-se à Figueira da Foz em 2007, quando decidiram aproveitar uma deslocação a Santiago de Compostela, a propósito de uma exposição de Rik Lina na Fundação Eugénio Granell (das únicas no mundo interessadas em Surrealismo Actual), para conhecer o amigo Miguel de Carvalho, que até então só conheciam por e-mail. Os primeiros contactos entre o casal e o livreiro e editor figueirense surgiram a propósito da epistolografia desenhada de Cruzeiro Seixas a amigos, como Rik Lina, numa demanda que, aliás, resultaria na exposição “Naufrágio de Ilustraletrações – as letras pensam melhor quando desenhadas”, que esteve também patente no Centro de Artes e Espectáculos (CAE) em Novembro de 2007. Rik e Elisé vieram e acabaram por ficar hospedados na casa de Miguel de Carvalho, que o próprio admite ser “o hotel dos surrealistas estrangeiros em Portugal”. Quando partiram, levavam consigo a certeza de voltar. “Já cá tínhamos estado em férias, e sempre gostamos de Portugal”, explica Elisé, num inglês claro. “Gostamos mais do que de Espanha”, acrescenta, “sobretudo porque as pessoas são mais amigáveis”. Talvez até demais, atendendo à cultura holandesa que lhe corre nas veias. “Às vezes nem acredito que as pessoas sejam tão simpáticas, penso que querem algo de mim”, confessa a ceramista, que ainda hoje estranha que alguém que acaba de conhecer a cumprimente com dois beijos. Voltaram em 2008, primeiro em Abril, depois em Outubro. Em Janeiro deste ano regressaram, e pelo menos até Agosto poderemos encontrá-los na sua casa amarela, a 500 metros da do amigo Miguel de Carvalho; no mercado a comprar peixe, jeropiga e legumes; ou na mais modesta tasca a culpar a comida lusitana pela “barriguinha portuguesa”, que já notam, enquanto pedem mais um petisco. Também é provável encontrar Rik na praia, a recolher da natureza tudo, ou quase tudo, o que precisa para criar os pigmentos que depois, de forma automática, algures entre o humano e o animal, o racional e o irracional, transforma em arte, em cor, em textura, em vida.
A primeira tela que Rik pintou na Figueira tem mais de 5 metros quadrados e chama-se “dia da liberdade”, em alusão à data, do ano passado, em que foi criada. Já depois de chegar definitivamente à Figueira, Rik Lina realizou uma obra sobre um velho e “horrível” lençol que encontraram na casa amarela, num gesto de reciclagem artística em que só se acredita quando Rik vira o avesso do quadro e deixa visível o padrão de mau gosto do antigo lençol. Mas as obras ‘made in Cabo Mondego’ são muitas, muitas mais.
No Cabo Mondego, Rik e Elisé estão em casa, e isso sente-se. Os amigos, e os mais que vierem por bem, também se sentem em casa. Mesmo com dezenas de linóleos espalhados pelo sofá (*). Mesmo com as embalagens de manteiga e biscoitos transformadas em recipientes para areia e terra, que peneira e mói, até estarem perfeitas para os seus pigmentos únicos. Mesmo com os preparativos para a exposição dos seus 50 anos de pintura, que terá lugar na Fundação José Rodrigues, no Porto, já em Agosto, e onde irá expor telas de 18 metros quadrados lado a lado com quadros de dimensões muito reduzidas, mas onde cabem os sonhos do Cabo Mondego. Ainda assim: o sorriso de Elisé e as suas improváveis cerâmicas, a energia tranquila de Rik e as suas obras vibrantes de cor e movimento, fazem-nos sentir em casa. Afinal, como disse o Conde de Lautréamont, o Surrealismo é “belo como o encontro casual entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecção”.
(*)“diálogos”
Uma edição artesanal DSO de homenagem a um amigo surrealista já ausente – Mário Cesariny – recebeu o nome de “DIALOGOS”. São 150 linóleos, cujo conteúdo corresponde exactamente a trabalhos colectivos realizados entre estes três amigos: Mário Cesariny, Rik Lina e Miguel Carvalho.
Notícia de Andreia Gouveia In Jornal " O Figueirense" - edição online - Ano 90 - Número 5612- Sexta-feira 15 de Maio de 2009